Entendo que para se pensar a espacialidade é necessário inquirir a produção das representações identitárias ou territoriais, deixando de lado a ideia preconcebida do sentido histórico, para buscar os jogos a partir das quais as relações são fabricadas.
Tocando as relações do Brasil com os Estados Unidos, quero colocar um problema a partir dos dois casos seguintes, por meio do estudo cartográfico.(1)
Primeiro caso de estudo: Yanko Tsvetkov é um designer gráfico nascido na Bulgária que assina com o pseudônimo de alphadesigner e que possui um sítio na internet onde publica mapas que apresentariam os estereótipos a partir dos quais a mídia ou o público de certos países tenderiam a entender os seus vizinhos.(2)
No recorte de mapa abaixo (clique nas imagens para aumentá-las), se poderia ler, segundo Tsvetkov, a compreensão que Donald Trump teria a respeito do mundo e, dos Estados Unidos. No primeiro mapa lê-se no espaço destinado à Europa: "Nova Meca" e, à África Central, "Terra Natal de Obama". Em referência ao espaço islâmico, lê-se, "Terroristas". Não há como se negar que é bastante sugestivo!
Segundo caso de estudo: Frank Jacobs é um colaborador do New York Times, onde mantém a coluna Borderlines, em que relaciona mapas e territorialidades.(3) Suas impressões e abordagens foram moldadas em 'Strange Maps', um blog sobre a cartografia, que mantém on-line desde 2006,(4) as quais resultaram na publicação de um livro com o mesmo nome em 2009.(5)
Em dezembro de 2011, Frank Jacobs publicou o post "The Mapa Cor-de-rosa: A Portuguese Empire That Never Was" onde, a partir da leitura de Philip K. Dick correlaciona a frase "Portuguese States of America", corretamente apontada como estando referenciada pela ideia de universo paralelo, com vários mapas da África portuguesa! Veja um dos exemplos abaixo (clique na imagem para aumentá-la):
O que quero aqui colocar é que os referenciais de Philip K. Dick (já trabalhados em outro post deste mesmo blog) estão adormecidos ou foram subsumidos pela leitura de Frank Jacobs, que faz, na verdade, um par semântico com as leituras apresentadas por Yanko Tsvetkov.
Sabemos que a frase "Portuguese States of America" (Estados Portugueses da América) aparece no livro 'Radio Free Albemuth' de Philip K. Dick, cuja escrita necessita ser relacionada com suas experiências místicas (ou esquizofrênicas), inauguradas em 1971. Nesse mesmo período, Philip K. Dick criticava abertamente o Partido Republicano e a presidência Nixon, tachados por ele de fascistas.
No livro 'Radio Free Albemuth', Philip K. Dick descreve as mensagens que estariam sendo enviadas por VALIS (Vast Active Living Intelligence System), uma entidade extra-temporal, desde os "Estados Portugueses da América". Essas mensagens de ajuda viriam de um universo alternativo, onde não teria havido revolução protestante (sic.) ou Reforma, um lugar em que as ciências serviam aos propósitos religiosos e onde Deus e Ciência caminhavam juntos, como frisa o autor.(6)
Assim, os "Estados Portugueses da América" estavam inseridos num raciocínio da renovação do mundo, um outro renascimento,(7) que deve ser relacionado com a imagem que Philip K. Dick fazia do futuro, como podemos observar em 'Do Androids Dream of Electric Sheep?' (Blade Runner); 'We Can Remember It for You Wholesale' (Total Recall); Minority Report e em outros livros depois transformados em filmes. Nestes, Philip K. Dick vislumbrava um futuro sombrio e ameaçador, onde o Governo e a Ciência se uniam para escravizar a humanidade.
Parece-me perfeitamente possível que Philip K. Dick raciocinasse a partir do conhecimento geográfico de um Estado, o Brasil, e do conhecimento histórico da colonização portuguesa das Américas. Deste modo, ainda que em 1971 o Brasil estivesse no auge da Ditadura Militar, o reconhecimento de uma identidade religiosa, cristã e africana, subsidiava a representação de um universo alternativo aos Estados Unidos e ao que ele imaginava ser o futuro da humanidade governada a partir dos princípios esboçados nessa espacialidade.
Onde será que essa visão da dicotomia Estados Unidos - Brasil se perdeu, para que não fosse sequer enunciada por Frank Jacobs? Será que as representações dos dois países já se encontraram a ponto de poderem ser perdidas algum dia? Fica com vocês a aventura da resposta, afinal, é deste mel que a relação espaço e história, a meu ver, se alimenta.
Renato Amado Peixoto, 29/01/2012 - Editado em 26/07/2016, atualizando o trabalho de Yanko Tsvetkov.
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(1) Trabalhei a ideia de 'estudo cartográfico' no meu livro Cartografias Imaginárias, p. 18-21.
(2) http://alphadesigner.com/mapping-stereotypes/
(3) http://opinionator.blogs.nytimes.com/category/borderlines/
(4) http://bigthink.com/blogs/strange-maps
(5) Jacobs, Frank. Strange Maps: An Atlas of Cartographic Curiosities. New York: Penguin Group, 2009.
(6) Dick, P. K. Radio Free Albemuth. New York: Arbor House, 1985, p. 124, p. 133-135.
(7) Jackson, Pamela & Lethem, Jonatham (Ed.) Exegesis of Philip K. Dick, New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2011, p. 32; p. 193.
Um comentário:
Considero sua análise muito apropriada. Um ótimo texto. Infelizmente não consegui abrir as imagens.
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