Amigos,
Postei ontem a palestra Gary Gygax e a invenção do Role-PlayingGame (dividi a palestra em cinco partes que estão disponíveis neste link) estão disponíveis ecom o áudio reequalizado e nesse trabalho acabei ficando instigado a repassar os pontos que ali discuti e a desenvolver um estudo de caso que ilustrasse parte dessa discussão. Quero, com isso, salientar que os Role-Playing Games (RPGs) devem ser compreendidos num processo e numa trajetória que têm de ser tornados visíveis para aqueles que participam desse movimento.
A importância de Robert Howard para a invenção e desenvolvimento do RPG por Gary Gygax é o primeiro ponto. Robert Howard, antes de Tolkien, desenvolveu uma estrutura que instrui espacial e historicamente os RPGs. Afinal, a produção da Hibória, um mundo virtual e paralelo, junto com a constituição de uma narrativa episódica, não-linear e não-cronológica que a ela se integra é a ideia base em que se fundam os RPGs. Junto a isso, Howard constituiu um personagem vibrante e fora-de-série, Conan, a partir do qual se explica a experimentação da 'aventura', o fundamento do movimento do RPG que, com a sobrevivência do personagem até a década de 1960, manteve vivas as ideias colocadas no papel por Howard desde o final dos anos 20.
Depois, Gary Gygax, o inventor do RPG, inspirou-se nas ideias de Howard para produzir o Dungeons & Dragons (D & D) no ambiente da Contra-Cultura e a isto se devem tanto as virtudes do movimento quanto os ataques por ele sofridos. As ideias de Howard e Gygax são, em essência, opostas à sociedade burguesa, aos conservadorismos de direita e esquerda e às ideias religiosas e políticas a estas associadas. Ambos autores trabalham a partir da revivescência de conteúdos que, grosso modo, estão situados nos campos do hermetismo e do libertarismo.
Nesse ponto, gostaria de colocar outra ideia: falo em movimento porque entendo que não se criaram apenas jogos, mas se consolidaram estilos de vida e práticas de espaço. Ainda, não compreendo o conceito de RPG apenas enquanto descrevendo espécies particulares de jogo, exemplificadas no D & D, mas que o conceito ‘RPG’ serve para discernir todas as outras espécies de entretenimento geradas a partir das ideias de Howard e Gygax, como, por exemplo, o Magic The Gathering (MTG).
O MTG é talvez o espécime mais bem sucedido e longevo dos RPGs e podemos bem apontar, por meio deste, certos problemas enfrentados pelos RPGs e as táticas e estratégias desenvolvidas tanto pela indústria quanto pelo movimento. Utilizarei, portanto, o MTG para exemplificar toda nossa discussão, fundada no tripé produção, disseminação e tradução de Jacques Derrida.
Assim, gostaria de colocar o ponto seguinte: os RPGs devem ser compreendidos por meio de uma análise que considere tanto o processo midiático em que este se instalou, uma vez que Gary Gygax funda o que podemos chamar de 'uma indústria de jogos', a Tactical Studies Rules Inc. (TSR), e um ambiente, a princípio acolhedor e depois reativo. Se os RPG tiveram grande expansão e se diversificaram, esta expansão e esta diversificação se deveu aos estímulos da Contra-Cultura para, a partir da década de 1980, ficar sob constante ataque dos conservadores da direita e da esquerda e das instituições religiosas.
Nesse sentido, a Wizards of The Coast (WTC), a proprietária da marca MTG, procurou se adaptar aos vários contextos espaciais, históricos e culturais enfrentados na expansão deste RPG. Exemplo: quando da introdução do MTG na China, a WTC teve de eliminar ou suavizar certas imagens e representações presentes nas cartas em que se baseia o jogo. Esqueletos e Zumbis, abominados pela cultura chinesa, tiveram suas imagens revestidas de carne ou humanizadas, o sexo deixou de ser sugerido e as referências religiosas ou políticas foram eliminadas.
Quando Richard Garfield, doutorando em matemática, inventa o MTG em 1993, suas referências eram as ideias já disseminadas de Howard e Gygax (o MTG é um RPG ambientado em mundos alternativos, narrativas episódicas e com um investimento na participação do participante nesse universo, a 'aventura'), contudo as suas representações consideravam já o ambiente da década de 1990, em que era o conservadorismo cristão era prevalecente.
Se Howard e Gygax trabalhavam em sua narrativa os antagonistas sobrenaturais por meio do conteúdo fornecido por Lovecraft na mitologia de Ctulhu, ou seja, deixando de se referenciar por uma oposição fundamental entre o bem e o mal que o cristianismo condensou na figura de um representante máximo - Satanás, o MTG buscava inspiração justamente nas alegorias do cristianismo, ainda que essas imagens não se casassem plenamente com suas representações na narrativa (exemplos abaixo). Era o auge mesmo da perseguição ao movimento e aos seus participantes, em que estes eram acusados, entre outras coisas, de satanismo, pederastia e práticas criminosas. A 'BADD', organização que reunia fundamentalistas dos mais variados tipos investia então furiosamente contra o D & D tanto nos Estados Unidos como no Brasil, procurando, com isso, disseminar as suas ideias conservadoras no campo religioso e principalmente, no político, casando-se com isso às ideias daquilo que então se denominava de neoliberalismo.
Como resultado, a WTC teve de enfrentar a reação conservadora nos Estados Unidos, tendo sido obrigado a se moldar às restrições: durante dezoito anos nenhuma criatura do universo do MTG pôde ser denominada de demônio ou diabo, passando a serem eufemisticamente chamadas como ‘horrores’ ou ‘abominações’ e tendo adulteradas suas imagens, se estas já fossem existentes.
Para fecharmos este texto, é interessante considerarmos outro
ponto - os RPGs transformaram-se em função também dessa investida, passando a
considerá-la enquanto um diálogo.
Vinte anos depois, nos Estados Unidos da era Obama, num
ambiente político e religioso bastante diferente daquele da década de 1990, o MTG
passou a incluir não apenas aquilo que fora banido pelo conservadorismo
religioso, mas também passou a considerá-lo em tom de paródia. No MTG nunca existiu
uma criatura com o ‘tipo’ de ‘humano’, justamente porque uma das mecânicas do
jogo previa o sacrifício – como sacrificar um humano?
Vinte anos depois se tornou possível não apenas incluir um
demônio, mas também incluir como seu atributo o sacrifício de ‘humanos’.
Por conseguinte, se a perseguição contra o RPG quase extinguiu
o movimento e estigmatizou seus participantes, este sobreviveu porque não é apenas um jogo, mas um movimento inserido
num universo de ideias e de trocas muito mais extenso que o se atribui a ele - coisa que não deveria passar despercebido de seus participantes.
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Bibliografia:
John Dale Beety. Dark
Ascension: More Questions Than Answers.
Asian Alternate Art.
http://squt.tripod.com/error8.html
Renato Amado
Peixoto. O
Conan de Robert Howard e a invenção dos Role-Playing Games
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