Translate

Para quem gosta do desconstrucionismo (como eu)

Amigos, foi lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras o livro Like a Rolling Stone, publicado nos Estados Unidos em 2005. Seu autor, Greil Marcus, é um dos maiores críticos musicais e um grande historiador da cultura estadunidense. Mystery Train, um de seus livros mais conhecidos, estabeleceu mesmo um padrão de qualidade em relação à aproximação com a música. Segue abaixo a matéria publicada hoje (05/04/2010) no jornal O Globo.


Livro conta a história de 'Like a rolling stone', o clássico de Bob Dylan

Antônio Carlos Miguel


RIO - Em síntese, "Like a rolling stone: Bob Dylan na encruzilhada" seria uma biografia da emblemática canção lançada em 1965 pelo compositor americano. Mas, através de quase 250 páginas (na edição brasileira, tradução de Celso Mauro Paciornik para a Companhia das Letras), o jornalista Greil Marcus (veterano da revista "Rolling Stone") dá pinceladas na formação e na carreira de Bob Dylan, estabelece diversos elos com outras canções seminais do rock e, em alguns momentos, também faz literatura, enveredando sem roteiro pelas muitas trilhas abertas por esse clássico do rock.

Faixa de abertura de "Highway 61 revisited", o segundo álbum elétrico do até então jovem deus da música folk, "Like a rolling stone" estabeleceu novos padrões para a poesia do rock, até então praticamente restrita ao tema "boys meets girl" e suas pobres variações. Com ela, Dylan consolidou as mudanças de rota que vinha tentando há um ano, após conhecer, durante uma turnê na Inglaterra, a efervescente cena roqueira que, com os Beatles à frente, começava a ultrapassar as fronteiras da Grã-Bretanha para conquistar o mundo.

Três anos após chegar a Nova York, em 1961, aos 20 anos, e logo virar um ídolo da música folk, Robert Allen Zimmerman não aguentava a pressão do sucesso, nem acreditava mais na fórmula de suas canções de protesto, que eram tomadas como palavras de ordem pelos fãs. Nesse período, o jovem que adorava os velhos mestres do blues e do folk ampliara muito as suas referências culturais, mergulhando também na poesia de gente como Arthur Rimbaud e Allen Ginsberg, no cinema de Fellini e Antonioni e nos sons do novo rock.

No verão de 1964, Dylan chocara o público do festival de música folk de Newport ao fazer a segunda parte de sua apresentação acompanhado de uma banda de rock. Heresia para os estudantes e os intelectuais de esquerda, que interpretaram aquilo como uma adesão à música comercial. O cantor foi vaiado por muitos na plateia, numa sequência de embates que prosseguiu por outras cidades americanas e durante uma turnê britânica, mesmo após reafirmar a guinada estética, e elétrica, no LP "Bringing it all back home", que lançou no início de 1965.

Mas foi mesmo nesse que é, até hoje, o seu melhor disco, "Highway 61 revisited" - a autoestrada 61 corta os Estados Unidos do sul, no Delta do Mississipi, ao norte, na fronteira do Canadá, passando por seu estado natal, Minnesota -, que o novo Dylan aflorou integralmente. Além de "Like a rolling stone", traz pérolas como "Tombstone blues", "Ballad of a thin man", "It takes a lot to laugh, it takes a train to cry", "From a Buick 6" e a épica, com 11 minutos de duração, "Desolation row".

Primeiro single do álbum - com seus seis minutos na época desmembrados em dois lados no compacto de 45RPM -, "Like a rolling stone" foi a canção responsável pela virada. Diferentemente das diretas letras de protesto que Dylan lançara até então, imediatamente adotadas como hinos nas lutas pelos direitos civis - como "Blowin' in the wind", "Masters of war" e "The times, they're are a changin'" -, o conteúdo dessa é ambíguo, permitindo diferentes leituras. A princípio, traça o perfil de uma garota da classe média alta que caiu na sarjeta. Mas, para Greil Marcus, pode tanto ser uma metáfora autobiográfica do compositor na encruzilhada existencial quanto um retrato do sonho americano que começava a desmoronar no período, após o assassinato de John Kennedy e o mergulho na Guerra do Vietnã. Repleta de imagens alegóricas e aberta como uma fábula infantil, "Once upon a time" ("Era uma vez..."), também refletiria as experiências de Dylan com a maconha - nunca é demais lembrar que foi ele que, naquele período, apresentou o primeiro baseado aos Beatles - e o LSD. Como relata Marcus, o impacto entre o público e os artistas da época foi imediato. Alguma coisa nova estava acontecendo, e nada mais seria como antes na canção pop americana.

Dylan teria se inspirado no sucesso "La bamba" Marcus teve acesso a todos os takes da gravação (que são reproduzidos integralmente no epílogo do livro), realizada nos dias 15 e 16 de junho de 1965, entrevistou diversos envolvidos na produção e também músicos das mais diferentes gerações influenciados por esse clássico instantâneo. Dissecada musical e literariamente, "Like a rolling stone" ganha as proporções de um clássico. Mas, curiosamente, teve como inspiração a ingênua "La bamba", de Richie Valens - muito da obra de Dylan nasceu a partir de outras canções, de obscuros temas do folk e do blues a sucessos do pop, às vezes se distanciando da fonte original. E ela foi gerada no estúdio da Columbia, em Nova York, graças à mente aberta do produtor Tom Wilson (depois, ainda durante a produção do álbum "Highway 61...", substituído por Bob Johnston), que, entre outras coisas, aceitou que o guitarrista Al Kooper sentasse num órgão, instrumento que nunca tocara até então, e criasse uma das marcas sonoras, ao lado da guitarra blues de Mike Bloomfield.

Outra curiosidade, esta incluída nas notas do livro, é que "Like a rolling stone" quase ficou esquecida. O single estava perdido em meio à pilha de "lançamentos sem data específica" da gravadora, rejeitado pelos departamentos de venda e marketing, que não acreditavam na viabilidade comercial de uma canção com seis minutos de duração. Shaun Considine, então diretor de novos lançamentos da Columbia Records, encontrou o disco durante uma mudança do escritório, levou-o para a casa e escutou-o algumas vezes. Empolgado, na mesma noite foi à discoteca Arthur, então a mais concorrida de Nova York, e pediu que o DJ a tocasse. "Por volta das 23h, ele a executou", escreveu Considine num artigo para o "New York Times", em 2004, "e o efeito foi sísmico. As pessoas ficaram de pé num salto e tomaram o salão, dançando todos os seis minutos. Os que ficaram sentados pararam de conversar e começaram a ouvir. 'Quem é esse?', o DJ gritou a certa altura, correndo na minha direção. 'Bob Dylan', eu gritei para ele". Também estavam nesse clube diretores de uma rádio, que, na manhã seguinte, pediram cópias para a Columbia, desencadeando a avalanche que a "pedra rolante" de Dylan criou.

Nenhum comentário: