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ARTAUD!

Num dia perdido de 1989 desci pela primeira vez as escadas que me levaram ao porão do Teatro Ipanema. Num recinto em penumbra, uma arquibancada em forma de semicírculo fechava o espaço no centro do qual Rubens Corrêa, talvez o maior ator brasileiro de todos os tempos, conduzia o monologo Artaud!

Luzes, sussuros, cheiros e urros conduziam o espectador a uma outra experiência, que tão bem aquele ator sabia guiar, olhos fixos em nossa alma.

Vi Artaud! Mais de uma vez, nunca da mesma maneira, talvez porque o espetáculo nunca foi encenado do mesmo jeito. A fumaça e o doce cheiro de perfume, os toques, os olhares, a dor que dividíamos, espectadores e ator, juntados no mesmo corpo e sentido.

Sentido da presença da obra, da arte e da vida de Antonin Artoud, dramaturgo, poeta, escritor, diretor de teatro e auto-nomeado mago, o homem-vida que influenciou a vida e a obra de Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e outros.

Assim, ofereço como um presente o texto abaixo, escrito por Antonin Artaud por volta de 1924 e, ao que eu saiba, jamais traduzido para o português.

"Aqui, onde os outros apresentam seus trabalhos, eu apenas quero mostrar minha mente.

A vida arde de perguntas.

Eu não consigo conceber um trabalho separado da vida.

Eu não amo a criação separada da vida. Eu não consigo mais conceber a mente separada de si mesma. Cada um dos meus trabalhos, cada um dos meus mapas, cada um dos pingentes de gelo que florescem de minha alma interior e se esparramam sobre mim.

Eu reconheço a mim mesmo tanto numa carta escrita para explicar o íntimo encolhimento do meu ser e a insana castração de minha vida, quanto num ensaio exterior a mim, que me parece uma indiferente gravidez de minha mente.

Eu sofro porque o Espírito não está na vida e a vida não está no Espírito. Eu sofro do Espírito como se este fosse um órgão, uma tradução, uma intimidação-com-coisas, de maneira a fazê-las todas entrar no Espírito.

Eu sustento este livro na vida, para ser mordido por coisas externas, e em primeiro lugar, por todos os problemas e começos, todos os espasmos do meu
futuro ser.

Todas estas páginas são os pingentes de gelo restantes da minha mente. Desculpe minha absoluta liberdade. Eu recuso fazer distinções entre qualquer um dos minutos de mim mesmo. E não reconheço a existência de qualquer mapa da mente.

Você tem que acabar com a mente, assim como com a literatura. Eu digo que a mente e a vida se comunicam em todos os níveis. Eu quero fazer um Livro que vá perturbar os homens, que seja como uma porta aberta levando-os para onde eles nunca consentiriam em ir. Uma porta simplesmente entreaberta para a realidade.

E isto não é mais um prefácio para um livro que os poemas, por exemplo, assinalam, ou a enumeração de todas as fúrias de uma alma rasgada.

Isto é apenas um pingente de gelo atravessado em minha garganta."

(Traduzido a partir da versão em inglês incluída no livro 'Artaud Anthology', editado por Jack Hirschman e publicado em 1965 pela City Light Books de São Francisco, Estados Unidos.)


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