Amigos,
Trago aqui, como contribuição para o debate sobre o
desenrolar dos acontecimentos do Charlie Hebdo a tradução, autorizada pelos
autores, do texto “We don’t want to be Charlie”, escrito por Tristan Sturm e
Elizabeth Farries. Este texto foi publicado no Academia.Edu em fevereiro de 2015 como um Op-ed (abreviação de 'opposite the editorial page'), termo utilizado para designar a seção dos periódicos que publica artigos especificamente destinados a se opor aos editoriais e, por conseguinte, reflete uma opinião que se confronta com os editoriais dos jornais para os quais os autores colaboram.
Tristan Sturm é professor do departamento de Geografia
da Queen’s University Belfast e pesquisador da geopolítica das religiões
fundamentalistas, teorizando o campo da Geopolítica Religiosa. Ele tem publicado
nos jornais 'Toronto Star', 'Haaretz', e 'Jerusalem Post'.
Elizabeth Farries é pesquisadora da University of
Toronto, na School of Information e é advogada no campo da defesa dos direitos
humanos. Ela tem escrito para os periódicos 'Huffington Post' e 'CounterPunch'.
“Nós não queremos ser Charlie”
Por Tristan Sturm and Elizabeth Farries
O massacre de Charlie Hedbo é uma tragédia, não há dúvida.
Não há justificativa e os assassinatos devem ser condenados. No entanto, desta
tragédia emergiu outra discussão sobre o direito à livre e irrestrita expressão,
independente do conteúdo, que ganhou grande alcance, incluindo nesta, o
editorial de Brian Lilley no Toronto Sun: "Não capitulem nossa
liberdade".
De fato, as reações imediatas e mais visíveis aos
assassinatos têm sido as chamadas à proteção da liberdade de expressão. Essas
chamadas descrevem os jornalistas do Charlie Hebdo como heróis, mártires, ou
modelos da liberdade de expressão. O público tem se juntado sob a hashtag 'Je
suis Charlie'. Cartunistas oferecem apoio, incluindo neste o desenho, feito por
Bansky, de um lápis solitário sendo quebrado e, a partir do qual, outros lápis
crescem. Comediantes se juntaram a partir da observação a "comédia não
deve exigir coragem" de Jon Stewart. Tina Fey argumentou "[Nós] não
podemos voltar atrás na liberdade de expressão, de qualquer forma ... mesmo que
sejam piadas idiotas... nós temos o direito de fazê-las." Conan O 'Brien,
comentou: "Esta história realmente atinge em cheio a todos que...
satirizam figuras políticas, sociais e religiosas."
Nós concordamos que a liberdade de expressão, incluindo a
sátira política, é um direito importante. Inclusive, Martyn Turner, do 'Irish
Times', escreveu que o Charlie Hebdo "enfrentou o extremismo com o riso, a
sátira e a liberdade de expressão." No entanto, nós também acreditamos que
a natureza desse livre discurso deva ser pensada em seu contexto. E, a respeito
das charges do Charlie Hebdo, o seu contexto é o da crescente xenofobia na
França contra os muçulmanos. Neste momento há uma grande reação contra o Islã,
com os muçulmanos sendo apresentados pejorativamente pela maioria dos franceses
(brancos) e a mídia. A discriminação institucional e a falta de oportunidades
são problemas significativos enfrentados pelos muçulmanos hoje. Para muitos,
têm sido negadas boas oportunidades de emprego e de residir em casas bem
situadas; suas condições de vida são semelhantes às experimentadas em guetos;
suas experiências educacionais são sofríveis; e eles estão sobre-representados
nas prisões francesas. Estas condições apoiam uma tendência contínua de
fracasso e exclusão.
Entrem nesse contexto os desenhos do Charlie Hebdo. Estas
charges não são simples desenhos satíricos do Islã. Elas contêm uma mensagem política implícita de condenação ao
Islã, nos limites do racismo. É irrelevante que esse periódico também
caricature Católicos ou defenda a si mesmo a "oportunidade igual" de
ofender a todos. Os cristãos claramente não são uma minoria desprivilegiada na
França. Os feriados nacionais continuam refletindo um caráter culturalmente
cristão da França. E a lei francesa que bane os símbolos religiosos conspícuos
tem sido criticada como deliberadamente visando a 'hijab' (1), enquanto que a cruz cristã tem sido permitida
como um emblema de fé "discreto".
Uma sempre citada defesa contra as acusações de racismo é
que o Islã não seria uma raça, mas uma religião. Contudo, para a maioria da Europa
Branca, o termo "Muçulmano" não é somente uma designação religiosa,
mas uma designação racializada. Ela conota uma localização geográfica
generalizada com a sugestão geopolítica de que seriam todos do Oriente Médio.
Isto fica sugerido à despeito de que quase a metade de todos os Muçulmanos não
viva lá.
Assim, o Charlie Hebdo está sendo intencionalmente e propositalmente
ofensivo a um grupo de pessoas marginalizadas na França. Tais charges, voltadas
contra uma religião minoritária, cujos fiéis são geralmente mais pobres e
sujeitos ao racismo institucional, ao fim não é uma sátira mas racismo velado.
Estas caricaturas ofensivas do Hebdo apenas alimentaram mais o volátil contexto
cultural da França.
Contudo, até agora a resposta social mais abrangente tem
sido negligenciar este importante contexto e gritar, em termos generalizados e
fora de contexto, sobre a liberdade. Mas estes assassinatos reprováveis não
deveriam servir para apagar o tom racista e xenofóbico das declarações do
Hebdo, não importa quão duro certos grupos de interesse trabalhem para
reconstruí-los como mera sátira ou liberdade de expressão.
E, finalmente, não,
"Nós não queremos ser Charlie." Nós reconhecemos que, enquanto
pessoas brancas e culturalmente Cristãs, nos beneficiamos das normas sociais
mais largas, sempre à custa da exclusão dos interesses das minorias. Nós não
queremos celebrar ou perpetuar isso. Nós queremos mudar isso. Então nós não
queremos aumentar a marginalização dos muçulmanos na França apoiando um grupo
de cartunistas, que embrulham seus estereótipos pejorativos nos ideias
especialmente santificados da liberdade de expressão. Suas mortes foram
deploráveis, mas eles não foram mártires. E nós não somos eles. Nous sommes pas
Charlie.
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Notas da tradução:
(1) Hijab: o véu ou as vestimentas femininas islâmicas.
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Tradução autorizada por Tristan Sturm para a língua portuguesa em 14/04/2015 e realizada por Renato Amado Peixoto em 15/04/2015.
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Notas da tradução:
(1) Hijab: o véu ou as vestimentas femininas islâmicas.
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Tradução autorizada por Tristan Sturm para a língua portuguesa em 14/04/2015 e realizada por Renato Amado Peixoto em 15/04/2015.
Um comentário:
Você como sempre, na vanguarda Amado. Muito bom.
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