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A fabricação da identidade estadunidense, do Conan, de Robert E. Howard, até Donald J. Trump




Amigos, aqui a nossa ideia é não deixar a identidade e a espacialidade falarem por si, mas, mostrar o que Robert E. Howard apontava por elas. Não dizer de sua literatura, mas entender o que Howard pretendia dizer por meio desta, para compreender a escrita dos contos de Conan, o Bárbaro, através das relações e experimentações que Howard constituiu.

Se existe uma diferência [e aqui trabalho o conceito de Jacques Derrida] dos contos de Conan em relação ao restante da obra de Robert E. Howard, ela se deve a certas circunstâncias que permearam a escritura como um todo, pois o criador de Conan havia então iniciado uma troca de correspondências com H. P. Lovecraft a qual incluía o empréstimo de ideias, elementos, bem como a discussão dos objetivos gerais de suas escritas.

Se o estilo de Howard já era vigoroso, foi ainda mais aprimorado, na medida em que seus resultados eram expostos à critica de Lovecraft. Por sua vez, o tratamento dado aos contos de Conan passaria a incluir toda uma estrutura, integrada não apenas pela produção de uma mitologia, tomada de empréstimo ao Mythos de Ctulhu, mas também pela utilização de noções de espaço e tempo singulares, debatidos e esmiuçados no diálogo dos autores. Na verdade, as produções de Howard e Lovecraft passaram a se interpenetrar.

Por conseguinte, se os contos de Conan se tornaram extremamente originais em relação à sua época, uma vez que resultaram dessa colaboração íntima, extraordinária e intensa. Conan e seu universo inseriram-se num círculo literário do qual Howard tinha interesse especial em participar, não apenas porque isto lhe permitia abrir uma janela para fora da acanhada, conservadora e preconceituosa cidade da qual não pode jamais escapar, mas porque também lhe possibilitava a entrada num universo seleto, prestigioso e rentável de escritores. Essa colaboração lhe ajudava a produzir continuamente obras capazes de competir e ganhar espaço na mais importante revista de seu gênero, a 'Weird Tales', num dos momentos mais agudos que se seguiram à Grande Depressão.

 
Os espaços, tempos e individualidades construídos em torno do personagem Conan impressionariam mesmo depois de vinte anos os mais influentes escritores de Ficção Científica e, extraordinário mesmo é que, ainda servissem, já passados oitenta anos, para basear um dos produtos culturais contemporâneos, a aclamada série 'Game of Thrones' da HBO.

Em relação à fabricação de uma identidade e espacialidade estadunidense, entendo que esta derivou realmente da experimentação de Robert E. Howard e certamente influenciou a sua escrita.

A questão de sua identidade sulista foi muito mais importante do que a de sua identidade texana, mas, talvez mais importante fosse a produção de seu pertencimento a uma identidade irlandesa.

No caso, e isto é citado algumas vezes na melhor biografia de Robert E. Howard, 'Blood and Thunder', de Mark Finn, a preocupação com a incorporação da ancestralidade irlandesa era uma questão extremamente forte para
Robert E. Howard por duas razões: porque sua mãe o lembrava constantemente de sua diferença em relação ao resto da comunidade de Cross Plains e, também, porque constituir e manter essa diferença importava a Robert E. Howard, na medida em que ele mesmo era repelido pela sociedade local. Poderíamos aventar que a diferença funcionava como defesa contra a indiferença.

Nesse sentido, a valorização do sulismo se dava por meio de uma cognição que significava o pioneirismo como o primeiro contato com o território e que ao mesmo tempo permitia constituir a relação com a origem ancestral irlandesa. 


Ser sulista lhe possibilitava dizer-se mais antigo que os texanos a sua volta e, fazia ter sentido falar do território texano como fonte literária, e não o Texas que se constitui a partir do Álamo, mas um Texas imaginado enquanto um território-recorte da construção romântica, onde desde 1500 se podia enxergava o cowboy no vaqueiro mexicano e se entendia a verdadeira dimensão da luta dos Comanches pela terra. Na verdade, sua identidade era mais com a grande aventura na qual ele, homem-acorrentado, não podia participar.

A partir desse sentido identitário se poderia entender o diálogo ‘Barbárie x Civilização’ que perpassa grande parte da correspondência entre Howard e Lovecraft. 

Quando Howard intui o bárbaro que habita em cada um de nós, este não seria apenas o selvagem ou o indivíduo que renega a civilização, mas alguém fiel apenas a si mesmo. Conan era a personificação do espírito livre que a civilização não poderia destruir, coabitando com o homem civilizado e despertando-o por um momento, para poder libertá-lo da hipocrisia.

Esta era a defesa de Howard contra as suposições acerca da civilização feitas por Lovecraft, homem sensível, mas simpatizante do Fascismo, um argumento forte, para cuja elaboração colaborava o próprio contexto racial nos Estados Unidos, onde o mito de que os irlandeses descendiam de uma raça escura era utilizado na década de 1920 para identificá-los com os afro-americanos. 


Este juízo havia servido mesmo para justificar a separação dos irlandeses e seus descendentes em relação aos demais grupos europeus nos censos estadunidenses até o final do século XIX. Daí o interesse de Howard no folclore celta, na ancestralidade celta, na linguagem celta; daí a nomeação e a caracterização física de Conan, como um homem de pele escura e queimada pelo sol, cabelos negros e olhos azuis.

Na verdade, Conan apenas pode ser colado à identidade texana na medida em que o Texas se parece com todas as fronteiras do mundo, selvagem, desolado, áspero. Verdadeiramente este era o território que Robert E. Howard havia escolhido para viver e escrever. Se H. P. Lovecraft amava sua cidade, Providence, dizendo mesmo: “eu sou Providence”, pode-se colocar, sem medo de errar, que Howard não amava Cross Plains, talvez apenas a suportasse e,  provavelmente a odiasse, afinal, ele fez questão dele e de sua mãe não serem enterrados em seu solo.


Antonin Artaud ao falar da existência, afirmava: “trata-se primeiro de não morrer morrendo, de não se deixar então despojar da vida pelo deus ladrão [...] E creio que há sempre alguém no minuto da morte extrema para nos despojar da nossa própria vida”. No caso, ao examinar o problema posto pelo suicídio de Robert E. Howard, poderíamos dizer que este sobreviveu por meio de Conan mais que noutros personagens, porque os rastros que permeiam sua escrita seriam mesmo o sentido que emprestamos a sua construção identitária, que apenas sobrevive para ser reconstruída na relocação de seus escombros, na rearrumação constante dos restos de suas portas e janelas.

Será que isto nos afasta, conforme afirma Roger Chartier “da percepção dos efeitos que produzem as diferenças empíricas que corrigem subsumindo-as”? 


No exame da identidade estadunidense de Robert E. Howard nos afastamos de um critério rígido de racionalidade ao nos concentrarmos na compreensão de sua concepção de espaço, ao deixarmos de lado as oposições entre oralidade e escrita? Nos afastamos da racionalidade ao procurar entender os mecanismos que permearam suas elaborações e, ao final de tudo, ao afirmar a centralidade da experimentação para a produção da concepção de espaço estadunidense do sujeito Robert E. Howard?

Acredito que não, pois ao afirmar esse sujeito em toda sua extensão ganhamos em complexidade, em riqueza, aprontando novos instrumentos e afinando novos métodos para mirar a materialidade que transborda da vida e, afinal, os sonhos não têm materialidade? Os sonhos não são construídos com os tijolos da existência? Suas estruturas não escorrem por sobre as páginas dos livros, não embebem as orelhas encardidas de suas edições, não se misturam ao cheiro de mofo que nos sobe pelo nariz?



E nos permite aventar que se aponta uma experimentação do sujeito Robert E. Howard que explode certas produções da identidade estadunidense baseadas em materiais semelhantes, mas, ao mesmo tempo, completamente antagônicas, como aquelas que hoje estão concentradas pelo discurso do candidato republicano Donald J. Trump.

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