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Blade Runner Blues 2 - Philip K. Dick, o viajante do espaço-tempo




Esta postagem é a continuação de outra postagem (Clique aqui para ler).



Bom, como prometi para vocês, a legenda que acompanha todas as versões do filme na língua portuguesa é:


Vi coisas nas quais vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Oríon. Vi a luz do farol... cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo... Como lágrimas na chuva. Hora de Morrer.

Do farol, não vou nem comentar, mas, como vocês podem notar, a tradução retira da fala de Roy Batty – o personagem de Rutger Hauer –, a singularidade de sua experiência, a sua existência enquanto escravo-androide e combatente de primeira linha nas guerras estelares.


Singular, porque enquanto um androide da classe ‘Nexus 6’ (Opa! Aqui estou escrevendo de Nerd para Nerd!) Roy Batty era mais inteligente e mais forte que todos os humanos e, no entanto, mesmo sendo indistinguível de qualquer humano, podia ser ‘retirado’ (literalmente morto) por um Blade Runner (os ‘Caçadores de Androides’ – esta parte é para a peixinha Dory). 


Aqueles que caçavam esses androides tinham que reconhecê-los através de um complicado teste em que se verificavam as oscilações involuntárias da pupila dos examinados, o ‘teste Voight-Kampff’ (amigos Nerds, notem que este teste é na verdade a questão proposta por Alan Turing, o ‘Jogo da Imitação’, num artigo muito famoso da década de 1950).


Os ‘Nexus 6’ seriam praticamente humanos, pois apenas um teste extremamente sutil, que necessitava de 30 respostas à questões absolutamente aleatórias, permitia separar os androides dos humanos e, isto porque a sua capacidade de acumular experiências foi limitada propositalmente - seus criadores instituíram um prazo de decadência de sua estrutura física de 4 anos (depois eles morriam - como se desligassem, viu Dory). 


No entanto, Roy Batty experimentou demais, muito mais do que qualquer humano poderia, mas, considerava-se lícito ‘retirá-lo’. São estas questões acerca da humanidade (e de humanidades) que Philip K. Dick trabalha em ‘Do Androids Dream of Electric Sheep?’.     


Talvez tenha pecado pela omissão em relação ao que escrevi, a fala de Roy Batty, comumente conhecida como 'Tears in Rain' não é apenas uma das cenas antológicas de 'Blade Runner', mas, um dos grandes monólogos do Cinema, onde roteiro e atuação se agregam para funcionar dentro e além do filme.

Toda a cena recebe a explicação do roteirista numa fala de Rick Deckard, o personagem de Harrison Ford: Roy amaria tanto a vida que preferiu não retirá-la de seu antagonista.


No entanto, persiste uma questão, pelo menos para mim, que continuo intrigado com a tradução daquilo que é inspirado em Philip K. Dick.

O monólogo altera muito certos raciocínios do filme, inclusive outra fala ao meio da película, a do proprietário da Tyrell (Dr. Eldon Tyrell) que, ao consolar Roy Batty lhe diz (é mais ou menos isto, não voltei o filme para procurar): as luzes que muito brilham também se extinguem mais rapidamente – Roy beija a boca de Eldon para, apenas no mesmo ato, esmagar seu crânio com todas as forças (volte aqui Dory!!!).


O ponto que gostaria de apresentar se refere à questão da autoria do monólogo ‘Tears in Rain’. 

O roteiro de Blade Runner é em geral creditado a Hampton Fancher, que escreveu seu primeiro rascunho em 1978 e complementou-o depois em 1980. Durante a gravação de Balde Runner, Ridley Scott pediu-lhe que fizesse algumas modificações no roteiro para tornar o filme mais ágil. O problema é que Fancher não quis fazê-las e Scott teve de contratar outro roteirista, David Peoples, para isso.


O fato é que no roteiro de 24 de julho de 1980, escrito por Hampton Fancher, o monólogo não existe! Conforme podemos constatar no IMSDb (um repositório de roteiros de cinema), Deckard simplesmente esvazia sua pistola laser em Roy Batty e fulmina o androide sem dó nem piedade.


Somente no roteiro de 23 de fevereiro de 1981, escrito por David Peoples, é que surge o monólogo:


I've seen things... (long pause) seen things you little people wouldn't believe... Attack ships on fire off the shoulder of Orion bright as magnesium... I rode on the back decks of a blinker and watched c-beams glitter in the dark near the Tanhauser Gate. (pause) all those moments... they'll be gone. 



Notem que vários elementos da fala de Roy já estão presentes na versão escrita por Peoples, mas faltam outros, e, fato crucial, na cena descrita pelo roteiro não está chovendo... Logo, não há condições para se enunciar a célebre frase “Todos estes momentos irão se perder no tempo, como lágrimas na chuva.” (ainda bem que você ficou Dory...).


Observem que o local ‘Tanhauser Gate’ possuía essa grafia diferente e isto coloca um problema interessante. 

Já se escreveu um artigo maravilhoso comparando o monólogo com a ópera Tannhaüser de Richard Wagner para dizer que o ‘Portão de Tannhaüser’ [Tannhaüser Gate] dizia respeito à Ópera, em que o protagonista, um cavaleiro que havia encontrado o 'Venuberg' (a morada de Vênus) passara deliciosos momentos com a gostosa Deusa, para depois voltar arrependido e, pasmem, pedir perdão ao Papa...


Bom, no roteiro é apenas Tanhauser e David Peoples menciona expressamente noutro filme (‘Soldier’) que se trata do palco de uma batalha estelar e, jamais falou de Richard Wagner em qualquer entrevista.


Na verdade, o que temos como o roteiro de David Peoples é apenas a uma das versões escritas para Ridley Scott e, sabe-se que na hora de rodar o filme foram apresentadas diferentes versões dos diálogos para que os atores pudessem emprestar mais credibilidade às suas cenas.


Assim, de que modo matar nossa charada: como o monólogo ‘Tears in Rain’ chegou à versão final, à fala de Rutger Hauer? 

Minha hipótese é a seguinte: em uma entrevista dada ao sítio 'Vice', em 23 de setembro de 2009, Rutger Hauer diz que mudou apenas algumas passagens do monólogo, logo sabemos que 'Tanhauser Gate' já existia no roteiro que lhe foi dado. 

Hauer diz que leu Philip K. Dick antes de topar fazer o filme e refletiu acerca das diferenças entre o roteiro e o livro, depois conversou com Ridley Scott, decidindo basear a sua participação no filme a partir do raciocínio acerca do 'Übermensch' (assim mesmo em alemão na entrevista - o sobre-humano de Nietzsche), na medida em que Roy Batty podia ser apontado por alguém como um Ariano, um protótipo da utilização nazista do pensamento de Nietzsche.


Hauer disse que ao receber sua fala, percebeu que ela tinha mais de 300 palavras e que tudo aquilo era um blá-blá-blá tecnológico sem sentido algum naquele ponto da filmagem, afinal, o androide Roy Batty estava, literalmente, no fim de sua existência, nenhum segundo podia ser desperdiçado. Daí ele selecionou apenas alguns trechos do roteiro e acrescentou a frase derradeira, no que foi endossado por Ridley Scott.


Penso que 'Tanhauser Gate' foi selecionada por Hauer por dizer sentido ao tipo de personagem que ele procurava montar, mas, também por causa de sua ascendência holandesa: provavelmente o vocábulo lhe pareceu próximo à sua cultura. 

Sim, e a cena transcorria na chuva, daí penso que ‘Tears in Rain’ foi encaixado por ele, na hora certa e, no espírito correto da trama e, é preciso dizer que Rutger Hauer foi aplaudido de pé no set de filmagem.


Pois é, minha hipótese é essa: um artista que ficou marcado por atuar em muitos maus filmes, mas muito bem preparado intelectualmente, foi o responsável direto por aglutinar o legado de Philip K. Dick ao filme de Ridley Scott e torná-lo verdadeiramente imortal.


Bom, se Philip K. Dick pudesse ter opinado ele diria que foi mágico (não é poeticamente Dory...), mas isso é outra postagem...


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Publicado em 05/03/2017.
Editado em 11/03/2017: Correções de texto apenas.

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