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Biografia de Derrida revela um pensamento engajado e marcado pela diferença

Amigos,
 
Foi publicada há dois anos, no Brasil, a monumental biografia de Jacques Derrida, escrita por Benoît Peeters, que lançará também em francês ‘Três anos com Derrida, os cadernos de um biógrafo', onde Peeters discerne sobre o exercício biográfico. Segue abaixo a bela entrevista concedida a Luciano Trigo, repórter do G1 em 12/05/2013.

Biografia de Derrida revela um pensamento engajado e marcado pela diferença

Embora, historicamente, não seja um gênero valorizado pelos próprios filósofos, a biografia pode representar para muitos leitores a porta de entrada para o seu pensamento. É este certamente o caso da ambiciosa biografia de Jacques Derrida escrita por Benoît Peeters (Civilização Brasileira, 742 pgs. R$ 79,90. Trad. De André Telles e prefácio de Evando Nascimento). Reconstutindo detalhadamente a trajetória do filósofo franco-argelino-judeu, criador do conceito de « desconstrução », o livro de Peeters ajuda a compreender uma obra intrigante, enigmática e tida como hermética, revelando seus laços com as questões políticas e com os debates intelectuais que marcaram a vida de Derrida.
Está tudo no livro : a infância em El-Biar, subúrbio de Argel, os estudos no Liceu Louis Le-Grand em Paris, a formação na École Normale Supérieure, a carreira como professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, a consagração no exterior e as controvérsias com pensadores como Foucault, Lacan, Lévi-Strauss, Habermas e Althusser. Peeters entrelaça essa narrativa biográfica com o processo de independência da Argélia, o microcosmo da École Normale, o desenvolvimento do movimento estruturalista e a turbulência durante e após os acontecimentos de maio de 68, contextualizando o pensamento de Derrida ao mesmo tempo em que apresenta um panorama intelectual efervescente, diante do qual o presente parece melancolicamente pobre. Dessa forma, como esclarece Peeters nesta entrevista, a biografia de Derrida deixa claro,  por exemplo, que o conceito seminal de desconstrução está asociado à particularidade de um pensador que nascido numa colônia na periferia do Ocidente, empreendeu o projeto de repensar os próprios fundamentos da cultura ocidental.

Benoît Peeters virá ao Brasil esta semana para lançar a biografia de Jacques Derrida em três cidades : em São Paulo, no dia 13 de maio, às 20hs, no Centro Maria Antonia (USP) ; no Rio de Janeiro, no dia 15, às 18h, na Maison de France ; e em Juiz de Fora, no dia 16, na Universidade Federal de Juiz de Fora.

- Você já colocou em questão a própria possibilidade de escrever a biografia de qualquer filósofo. Quais foram os desafios específicos de escrever a biografia de um filósofo como Jacques Derrida?

BENOÎT PEETERS: Como gênero, a biografia foi por muito tempo desacreditada, primeiro por Proust, no ensaio ‘Contra Sainte-Beuve’, depois por quase toda a modernidade, do estruturalismo de Roman Jakobson à sociologia de Pierre Bourdieu, passando pela Nova História. Reprovava-se especialmente na abordagem biográfica o fato de superestimar a singularidade do indivíduo, em particular na figura do “grande homem”.  A biografia, no entanto, não é um gênero tão fácil de se descartar, e o próprio historiador Jacques Le Goff acabou escrevendo uma biografia de São Luís que propõe uma profunda renovação do gênero, um modelo de biografia “inquieta”. No caso de um filósofo, é verdade que essa questão se impõe de maneira particular: naturalmente,  uma biografia não deve de forma alguma substituir a leitura dos seus textos, nem tampouco apresentar uma explicação redutora ou simplista do seu pensamento. Mas isso não quer dizer que a biografia de um filósofo está condenada à superficialidade ou à irrelevância.


A biografia de Jacques Derrida que escrevi não tinha nenhum assunto proibido a priori. Eu tentei entrelaçar a história de um homem e sua inserção no seu século, a gênese do seu pensamento e a recepção de sua obra, a série longa e excepcional de amizades que ele teve e a igualmente longa série de controvérsias em que se envolveu. Eu estava interessado principalmente nas suas obras, mas também nos seus gostos, em seus laços familiares e em muitos outros aspectos de sua existência, sempre que me parecessem esclarecedores . Eu não queria escrever um ensaio filosófico disfarçado de “biografia intelectual”, mas sim uma verdadeira biografia. Tentei retratar não somente a trajetória de Jacques Derrida, mas também os mundos nos quais ele mergulhou: a Argélia de sua infância e adolescência, a Paris de sua juventude, os Estados Unidos, onde triunfou, e suas inúmeras viagens – das quais a última foi para o Brasil, para participar de um colóquio no Rio de Janeiro ['Pensar a Desconstrução - Questões de política, ética e estética', realizado em 2004 no Rio de Janeiro].

Para realizar este projeto, eu naturalmente empreendi a leitura ou releitura mais completa possível de uma obra cuja magnitude é bem conhecida: 80 livros publicados e inúmeros textos esparsos. Eu me baseei sobretudo nos extensos arquivos que Derrida nos deixou, e que fui o primeiro a explorar, no IMEC [Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine], na Normandia, e em Irvine, perto de Los Angeles. Mas se esses arquivos conservam todas as cartas recebidas, eu precisei fazer uma extensa pesquisa para encontrar os milhares de cartas que ele enviou para Louis Althusser, Paul Ricoeur, Maurice Blanchot, Michel Foucault, Emmanuel Levinas, Philippe Sollers, Paul De Man, Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe, Sarah Kofman e muitos outros. Algumas cartas da sua juventude são ainda mais esclarecedoras, e estas foram as mais difíceis de encontrar.

Mas penso que teria sido um absurdo me basear apenas nos materiais escritos, já que a maioria das pessoas que eram próximas ao filósofo ainda estão vivas : também era meu dever, portanto, recolher os seus testemunhos. Essas centenas de encontros foram essenciais, ainda que muitas vezes eles tenham sido longos e repetitivos. Tive a oportunidade de conversar com o irmão, a irmã e um dos primos de Derrida, com sua esposa Margaret, com seus filhos Pierre e Jean, bem como com muitos amigos e amigas de todas as idades: Hélène Cixous, Elisabeth Roudinesco, Avital Ronell, Philippe Sollers, Jean-Luc Nancy, Bernard Stiegler e muitos outros. Eu entrevistei editores, colegas, estudantes e até mesmo alguns de seus detratores.
Sem ser hagiográfica, minha biografia procede em grande parte dessa empatia. Pareceu-me que tal abordagem era a melhor maneira de propor uma nova porta de entrada para essa obra abundante, que pode parecer intimidadora para muita gente. Eu não queria apenas para descrever a trajetória de Jacques Derrida, eu tentei entendê-lo. E mostrei um Derrida frágil e atormentado, um Derrida sensível e lírico, que sonhava ser um escritor, tanto quanto um filósofo. É claro que a filosofia está muito presente no livro, mas nunca na forma de uma exposição teórica. Eu me interesso sobretudo pelas leituras e influências, pela gênese de suas principais obras, pelas turbulências de sua recepção.  E conto os combates em que Derrida se envolveu, especialmente no plano político. Meu livro se pretende acessível a todos os leitores cultos e curiosos, longe de um mimetismo que me parece estéril.

- O próprio Derrida refletiu sobre o gênero biografia e sobre sua relação com a filosofia. Você acha que ele gostaria de ler seu livro?

PEETERS: Muitos pensadores desprezaram o gênero biografia, mas este não foi jamais o caso de Jacques Derrida. Ele era fascinado por filósofos que davam um papel importante às suas próprias vidas, como Nietzsche, Kierkegaard ou Rousseau. E muitos de seus livros – como Circonfession, Le Monolinguisme de l’autre ou L’Animal que donc je suis – têm um um caráter nitidamente autobiográfico. Acredito que ele não ficaria chocado diante de uma biografia sua, muito pelo contrário. Em todo caso, é preciso dizer que os acontecimentos de sua vida não constituem uma explicação definitiva de seu pensamento. As noções de verdade e de origem estão, aliás, entre aquelas que Derrida não cessou de desconstruir, para usar uma de suas palavras fundamentais.  


Mas quanto a imaginar o que Jacques Derrida poderia dizer ou pensar da minha biografia, isso seria impossível, ou mesmo obsceno. Pois, se ele ainda estivesse entre nós, o meu livro não existiria. Eu estou de fato convencido de que a biografia pressupõe o desaparecimento daquele cuja vida se conta. Mas, ao mesmo tempo, esse desaparecido, esse ausente, permanece sendo, fantasmaticamente, o leitor mais importante. Ele é o fantasma para o qual eu escrevo. Aos meus olhos, o biógrafo deveria ser capaz de assumir seu livro diante daquele cuja vida ele contou. Isso não significa de forma alguma complacência: é como se eu me dirigisse a um amigo, a quem eu poderia dizer coisas às vezes irritantes ou desagradáveis, mas sempre com respeito e lealdade.

- O sentimento de ser diferente, de não-pertencimento, parece ser essencial para entender a vida e obra de Derrida. Você concorda?

PEETERS: Sim, isso me parece inegável. Nascido em 1930 na Argélia, em uma família judia assimilada, Derrida conheceu desde sua infância a experiência do racismo. Já em 1942, por causa das medidas anti-semitas tomadas pelo regime de Vichy, ele foi excluído da escola por um ano. À semelhança de outros judeus da Argélia, ele perdeu sua nacionalidade francesa, antes de recuperá-la graças a De Gaulle. Essas experiências o marcaram para sempre. Mas, nessa época, ele também manteve certa distância da escola judaica, aberta pelos professores expulsos das instituições de ensino oficiais. Esses temas se repetem ao longo de toda a vida e obra de Derrida. A idéia de “comunidade” é uma daquelas que lhe causam mais desconforto, porque a seus olhos a identidade é sempre múltipla e inquieta.

-Fale um pouco sobre a relação de Derrida com Albert Camus, com quem ele compartilhava a condição de franco-argelino. Essa origem apresentava os mesmos problemas para os dois pensadores?

PEETERS: Os primeiros livros de Albert Camus foram para Derrida leituras muito importantes. Adolescente, ele encontrou em ‘Núpcias’ e ‘O estrangeiro’, que haviam acabado de aparecer, um encontro quase milagroso entre a literatura francesa e o universo concreto que era o seu. ‘O estrangeiro’ permanecerá para Derrida como um livro profundamente argelino, dimensão subestimada na leitura filosofante proposta por Sartre. Quanto a ‘Núpcias’, é o primeiro livro que ele dará de presente a Marguerite Aucouturier, que se torna sua mulher alguns anos mais tarde.


Nós sabemos que, no momento da Guerra na Argélia, e especialmente depois de seu discurso em Estocolmo, Camus foi atacado e mesmo agredido pela maioria dos intelectuais franceses. Mas a posição de Derrida foi muito mais matizada. Em uma longa carta enviada em 1961 a Pierre Nora, Derrida defendeu o escritor, que morrera no ano anterior: “Não muito tempo atrás, muitas vezes eu julguei Camus como você faz, e pelos mesmos motivos. Hoje já não sei se isso é honesto, e se algumas das advertências que ele fez não serão consideradas no futuro como exemplos de lucidez e rigor. Mil coisas e todo o passado de Camus permitem darmos a ele o crédito de uma intenção pura e clara. 

Para Derrida, assim como para Camus, a Guerra da Argélia foi uma experiência traumática e decisiva: o conflito alimentou a posição política subsequente de Derrida, especialmente as suas corajosas intervenções a respeito do o conflito israelense-palestino. É como se, ao longo de toda a sua vida, Derrida tentasse reparar a cisão, a ferida que sentira então, entre as suas crenças anti-coloniais e o seu apego visceral à Argélia. Mas o assunto era explosivo e controverso demais para que Derrida pudesse abordá-lo publicamente nos anos 60 e 70. Somente no final de sua vida ele falará de Camus, que era indissociável daquele tema. Derrida analisará então a novela ‘L’hôte’, em seu seminário sobre a hospitalidade, e examinará textos de Camus dedicados à pena de morte, no seminário de dois anos que realizou sobre essa questão, já no final de sua vida. 

- Entre 1945 e 1965, o grande modelo de intelectual na França foi Sartre, que era ao mesmo tempo um filósofo e escritor. Como Derrida lidava com Sartre, o Existencialismo e a questão do compromisso político dos filósofos ?

PEETERS: Ainda mais que Camus, mas de uma forma menos íntima, Sartre foi determinante para Derrida durante os seus anos de formação. Ele já lia Sartre quando era estudante do Liceu em Argel e acompanhava atentamente os debates da revista ‘Les Temps Modernes’, durante seus anos de estudante. Em uma entrevista publicada no Japão, Derrida sublinhou, mais que em qualquer de seus textos publicados, a importância que Sartre teve para ele naquela época: “Sartre é um pensador insuperável na minha história pessoal, porque foi o próprio elemento em que eu comecei a ler. E, ao mesmo tempo acredito que ele representa tudo que precisamos superar, que já está ultrapassado. De certa forma, eu comecei a escrever e a publicar no momento em que Sartre parou de importar para mim”.

Se Sartre se tornou rapidamente para Derrida uma espécie de “contra-modelo” filosófico e literário, também é verdade que Sartre permitiu a Derrida descobrir uma série de autores que seriam essenciais para ele. Na mesma entrevista no Japão, Derrida aliás reconhece claramente: “A primeira vez que eu vi o nome Blanchot, o nome Francis Ponge, o nome Georges Bataille foi nas ‘Situações’ de Sartre. Comecei lendo os artigos de Sartre sobre esses autores, antes de ler suas obras. Aconteceu  a mesma coisa  em relação a Heidegger e Husserl,  quero dizer, passei a ler esses autores colocando em questão a leitura Sartre”. Portanto, Derrida herdou de certa forma os autores-fetiche de Sartre, mas para abordá-los de forma totalmente diferente. O caso de Jean Genet é naturalmente o mais marcante: o livro ‘Glas’, de Derrida, especialmente, pode ser lido como juma réplica ao livro ‘Saint Genet – Comédien et martyr », de Sartre.

- Na sua opinião, o que aconteceu em 1962/1963, quando Derrida começou a efetivamente “tornar-se Derrida”, com a produção acelerada de textos importantes?

PEETERS : Em um bela carta de 1953 a seu amigo Michel Monory, Derrida se dizia desolado por não se sentir capaz de escrever:  ”Isso é ainda mais desolador porque sei que não me salvarei – pelo menos aqui onde estou – se eu não escrever constantemente, nem que seja apenas para mim mesmo.” Em sua juventude,  Derrida se sentiu muitas vezes melancólico e duvidou profundamente de si mesmo. Após a sua dissertação de mestrado, ele levou anos para completar o seu primeiro livro, a tradução da ‘Origem da geometria’, de Husserl, assinando o longo texto de introdução que acompanhou a obra. Derrida se tinha imposto um desafio difícil, um texto de alta tecnicidade, que ia contra a sua inclinação literária e lírica. Era uma espécie de “tábula rasa” para ele.

Mas a publicação do primeiro livro, nos últimos dias de 1962, marcou uma mudança decisiva. A obra é muito bem recebida na comunidade filosófica,  Derrida recebe um prêmio importante e a admiração de seus pares. A partir daí, muito rapidamente se multiplicam as encomendas de artigos e convites para conferências, definindo um  novo e privilegiado relacionamento de Derrida com a escritura. Ele publica então, em  rápida sucessão, vários artigos importantes – sobre Levinas, Jabès, Foucault etc – que serão retomados no livro ‘A escritura e a diferença’. É como se as encomendas o libertassem interiormente, e ele se sentisse autorizado a escrever. Intervir in situ, em função de um contexto, responder a uma demanda, ainda que de forma sofrida, se tornará sua marca registrada.

É claro que muitas outras coisas aconteceram em 1962, incluindo a independência da Argélia, que foi um acontecimento decisivo para Derrida. Uma página foi virada, “Jackie” se transformou em Jacques Derrida.

- Qual era a relação de Derrida com o comunismo e marxismo? Ele foi realmente um pensador de esquerda ? 


PEETERS: Tentei mostrar no meu livro que o pensamento de Derrida sempre foi profundamente político. Mas essa dimensão permanecerá durante muito tempo discreta ou implícita. Dos anos 50 aos anos 70, no meio em que ele circulava, particularmente a École Normale Superieure, a pressão marxista – primeiro stalinista, depois maoísta – foi particularmente pesada. Contrariamente à maioria dos intelectuais de sua geração, Derrida sempre se recusou a se conformar. Em 1971, quando o seu silêncio em relação a Marx incomodava  muitos de seus amigos, ele explicou muito claramente sua posição em uma carta a seu antigo colega Gérard Granel: “Se eu tivesse percebido o que é o”principal” em Marx e tudo o que está em jogo sob o seu nome, se eu pudesse fazer uma leitura de todo esse campo que não representasse uma regressão  em relação ao que eu tento fazer com outros temas, eu também escreveria sobre Marx”. Derrida afirma que só sairá de seu silêncio quando tiver “feito o trabalho”: “E esse trabalho, eu suspeito, conhecendo meu jeito e meu ritmo, não dará origem a uma “conversão”, mas a incisões oblíquas, deslocamentos de questões, seguindo esta ou aquela veia despercebida do texto marxista.”

Mas essa recusa de submissão ao dogma marxista não corresponde de forma alguma a uma atitude apolítica. Desde essa época, Derrida atua “à esquerda” sempre que ele acredita possível, sem grandes ilusões sobre o alcance microscópico de determinada ação. Ele aliás pagará muito caro por seu combate pelo ensino da filosofia, que esteve ameaçado sob a presidência de Valéry Giscard d’Estaing. Chegou a ser preso em Praga, em dezembro de 1981, quando participava de um seminário filosófico clandestino. A coragem de Derrida se manifestou muitas vezes de forma intempestiva. Da mesma forma que ele se recusou a escrever sobre Marx quando todos os seus colegas cobravam isso, ele publicou ‘Espectros de Marx’ em 1993, num momento em que o pensamento marxista estava particularmente desacreditado. Esse livro foi um importante sinal, um acontecimento intelectual. ‘Espectros de Marx’ contribuiu fortemente para a crítica ao neoliberalismo então dominante e para o ­questionamento da tese do “fim da História” de Francis Fukuyama.

Durante os últimos dez anos de vida, Derrida se engajou politicamente de forma muito assertiva, notadamente sobre a pena de morte nos Estados Unidos e sobre a questão dos imigrantes ilegais na França. Mas ele jamais negava a complexidade desses temas e, como Pierre Bourdieu e Gilles Deleuze, até o fim da vida teve uma atitude de desconfiança em relação à mídia. Derrida sempre se manteve distante dos autores “prêt-à-penser” e dos slogans simplistas. Ele buscava uma forma de intervenção diferente daquela dos “novos filósofos”, principalmente Bernard-Henri Lévy. Para Derrida, o compromisso político era inseparável de um verdadeiro trabalho filosófico.

- Nos anos 60 e 70 havia na França uma pletora de pensadores importantes, como Foucault, Barthes e Deleuze, e uma vida intelectual era marcada por controvérsias, debates, intervenções políticas… O mundo do pensamento parece bem mais pobre hoje em dia, você concorda? 

PEETERS: De fato a geração de Derrida teve diversos pensadores de primeira linha. As relações entre eles eram vivas, e os debates eram às vezes violentos, mas sempre sendo travados em um nível muito elevado.

Quando eu era estudante em Paris, em meados dos anos 70, tive a oportunidade de conhecer um pouco essa extraordinária efervescência intelectual. Eu era aluno de Roland Barthes na École Pratique des Hautes Etudes. Às vezes eu assistia aos cursos ou seminários de Foucault, Derrida e Lacan. Eu frequentava os Colóquios de Cerisy, onde essas trocas eram livres e muito vibrantes. Tudo isso me marcou para sempre e me ajudou muito a escrever essa biografia. Não me interessava escrever sobre um Derrida fora de seu contexto, como se ele fosse um pensador solitário, mas, ao contrário, fazer reviver o filósofo em seu século, sublinhando particularmente a dimensão política de seu pensamento. Como acontece com as ciências, a História da filosofia é pontuada por debates, por controvérsias às vezes violentas, mas que não são fúteis. Recuperar esses conflitos me fascinou, porque muitas dessas questões não perderam nada de sua atualidade.

É verdade que, ao lado de Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Deleuze e Derrida, os pensadores que estão na moda hoje parecem bem mais fracos. Isso não quer dizer que não existem mais pensadores de primeira linha na França e em outros lugares, mas apenas que os pensadores mais profundos entre eles não têm a mesma visibilidade que tinham as principais figuras dos anos 60 e 70 . Os intelectuais mediáticos roubaram o espetáculo, e a exigência teórica se empobreceu consideravelmente.

- O conceito de desconstrução nem sempre é bem compreendido. Você pode resumi-lo?

PEETERS: É difícil definir em poucas linhas o conceito de desconstrução sem fazer uma caricatura. A própria palavra nem sempre é bem compreendida. Foi talvez na sua “Carta a um amigo japonês” – que não encontrou um equivalente satisfatório nos seus textos teóricos – que Derrida explicou mais claramente a escolha do termo, que ele não imaginou sequer por um momento que se tornaria tão central em seu trabalho, nem que muitas pessoas acabariam por reduzir sua obra a esse conceito.

Na origem, Derrida queria traduzir e adaptar aos seus propósitos as palavras heideggerianas Destruktion e Abbau, dois termos que correspondiam a recolocar em questão – ou em perspectiva – os conceitos fundadores da ontologia e da metafísica ocidental. Mas em francês o termo “destruição” tinha uma carga negativa demais. A palavra “desconstrução” descrevia melhor a abordagem genealógica que era a de Derrida. Inicialmente desconstrução se referia apenas a uma maneira atenta de ler um texto, em uma espécie de arqueologia textual. Mas, aos poucos, a desconstrução se tornou um método mais abrangente, uma maneira nova de desfazer as falsas verdades. É por essa razão que o conceito teve um impacto considerável no Direito, na Teologia, nos estudos pós-coloniais e nos estudos de gênero. A desconstrução também foi muito reivindicada pelos arquitetos, o que levou a muitos mal-entendidos.

Os inimigos de Derrida equiparam a desconstrução a uma espécie de niilismo, como se fosse uma abordagem puramente negativa. Em 1992, quando Derrida foi convidado a receber o título de Doutor honoris causa na Universidade de Cambridge, um centro da filosofia analítica, os filósofos e os cientistas da instituição assinaram uma petição afirmando que isso representaria quase um suicídio para a universidade. Eles entendiam que a desconstrução pretendia arruinar a possibilidade de qualquer conhecimento, sugerindo que todas os enunciados se equivalem, que todas as tradições podem ser reduzidas a nada etc. Na verdade esta é uma caricatura grosseira do pensamento derridiano. A desconstrução propõe a possibilidade de uma nova afirmação, para além das convenções. “Prefiro dizer sim” era uma das frases-chave de Jacques Derrida.

- Fale sobre seu outro livro ligado à biografia, ‘Três anos com Derrida, os cadernos de um biógrafo?

PEETERS:  Durante três anos,  dediquei a maior parte do meu tempo a esta biografia, com uma paixão permanente. Enquanto isso, registrei em pequenos cadernos as etapas dessa pesquisa: os encontros e as leituras, as descobertas e as pistas falsas, as reflexões e as dúvidas que o trabalho despertou. ‘Três anos com Derrida’ é um diário de bordo e ao mesmo tempo um um ensaio sobre um gênero frequentemente desprezado, que é a biografia. Porque, se as biografias têm muitos leitores, a biografia, como tal, não parece ter defensores. É como se fosse um gênero bastardo, impuro, sempre à beira de indignidade. Como se o biógrafo não pudesse ter nem a imaginação do romancista nem o rigor do historiador. Como se ele estivesse sempre condenado à anedota ou à complacência. Minha impressão é bem diferente. Para além da minha experiência pessoal, que eu conto no livro, sem esconder nada, ‘Três anos com Derrida’ é em primeiro lugar um elogio do gênero biográfico.

 

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